Reflexão: Relatório Sobre O “Grande Terminal Central” (Leó Szilárd)

A Guerra Fria sob o ponto de vista alienígena

Leó Szilárd, físico húngaro, ficou famoso por ter sido o primeiro cientista a conceber a ideia da reação em cadeia nuclear. Chegou aos EUA em 1938, fugindo do nazismo, assim como inúmeros outros brilhantes cientistas – entre eles, seu amigo Albert Einstein. Os dois foram os responsáveis pelo que ficou conhecido como a Carta Einstein-Szilárd, endereçada em 1939 ao presidente americano Franklin D. Roosevelt, e que apontava a urgente necessidade de os EUA iniciarem um programa de fabricação de armas nucleares, visto que havia fortes indícios de que os nazistas alemães estariam conduzindo pesquisas sobre fissão nuclear com o objetivo de construir bombas atômicas. A resposta do presidente foi a criação do Projeto Manhattan, do qual Szilárd fazia parte.

O projeto já estava bastante avançado à época da derrota da Alemanha nazista. O problema era que o Eixo possuía uma tecnologia nuclear muito atrasada com relação à americana. Logo, surgiu a questão: por que o projeto Manhattan deveria continuar, se seu objetivo era a produção de armas que rivalizassem as que os nazistas supostamente possuíam? Szilárd e muitos outros cientistas acreditavam que a bomba não deveria nem precisaria ser usada, e que as ameaças americanas seriam suficientes para que o Japão, o único inimigo ainda restante, se rendesse. Ele e mais 70 cientistas do projeto criaram, então, uma petição endereçada ao novo presidente Truman, em julho de 1945, pedindo que ele tivesse extrema cautela na decisão de usar ou não a bomba e que considerasse as reponsabilidades morais envolvidas caso optasse por usá-la. No entanto, a petição nunca chegou ao presidente e, em 6 de agosto de 1945, os EUA jogaram a “Little Boy” sobre Hiroshima e, 3 dias depois, a “Fat Man”, sobre Nagasaki. Além de não ser escutado, Szilárd ainda foi perseguido pelo diretor do projeto Manhattan, e teve seu pior pesadelo feito realidade.

Szilárd entendia que as complicações do uso de uma bomba atômica não seriam apenas a destruição de milhares de vidas, mas também o início de uma corrida nuclear armamentista, que poderia eventualmente culminar numa guerra nuclear e na consequente destruição do mundo. A partir de então, passou a realizar ações que promoviam o fim das armas nucleares, como o Emergency Committee of Atomic Scientists, criado em 1946 juntamente com outros grandes cientistas. O objetivo do comitê era elucidar a população a respeito dos perigos das bombas nucleares, promover o uso de tecnologia nuclear para fins pacíficos e trabalhar pela paz mundial. Em 1962, criou o Council for Abolishing War, que pretendia alertar as pessoas e o governo do perigo de uma guerra nuclear e encorajar o uso racional da tecnologia e o desarmamento nuclear. O grupo existe até hoje, com o nome de Council for a Livable World, e ainda tenta acabar com o arsenal de armas nucleares dos EUA.

Desiludido com os rumos que as armas nucleares tomaram, e convencido de que a Guerra Fria logo se tornaria uma guerra de fato, e a mais destrutiva de todas, Szilárd procurou fazer-se ouvir através da ficção científica, gênero em alta no período. Disse ter sido influenciado por autores consagrados no gênero como H.G. Wells, principalmente por seu livro The World Set Free (1913), no qual apresenta as ideias de armas nucleares, ou “bombas atômicas”, que funcionam por uma reação em cadeia e emanam radiação como resultado – anos antes de qualquer uma dessas coisas ter sido realizada. Szilárd publicou apenas uma coletânea de contos, intitulada The Voice of the Dolphins and Other Stories, na qual trata dos possíveis rumos que o planeta poderia tomar após uma guerra nuclear e das motivações humanas que culminariam nesse terrível fim. Um dos contos mais expressivos nesse sentindo é Relatório Sobre O “Grande Terminal Central”.

Um grupo de aliens pousa na Terra num futuro não definido e descobre que toda a vida está extinta no planeta. Começam, então, a investigar as possíveis causas do extermínio. Até que seus equipamentos identificam um leve traço de radioatividade no ar. Um dos aliens, Xram, lembra que, cinco anos antes, intensos raios de luz foram vistos na Terra, e sugere a hipótese de que teriam sido resultado de várias explosões de urânio, que acabaram por matar toda a vida no planeta. Os demais aliens, a princípio, refutam a hipótese, visto que o urânio não é naturalmente explosivo e que “uma vez que os antigos habitantes da Terra (...) devem ter sido seres racionais, é difícil acreditar que tenham tido todo este trabalho de processar o urânio apenas para se destruírem a si mesmos”.

Essa última frase poderiam muito bem ter saído da boca do próprio Szilárd, e não de um alien. Para ele, era inconcebível que uma espécie dita “racional” poderia causar seu próprio fim – mas era justamente isso que a Guerra Fria prometia.

Os aliens acabam concordando com Xram, visto que as análises científicas embasam sua hipótese. Mas, quando o alien tenta explicar o motivo das explosões, dizendo que acreditava ter ocorrido na Terra uma guerra entre dois continentes, seus companheiros novamente se recusam a acreditar. O alien-narrador, amigo de Xram, tenta achar justificativas para essa guerra: seriam os dois continentes habitados por espécies diferentes de terráqueos? Ocorrera uma crise de superpopulação? Mas as evidências científicas dos cadáveres encontrados descartam essas possibilidades. Segue-se então uma divertida narrativa sobre como os aliens entram em uma estação de trem denominada “Grande Terminal Central” e, a partir do que encontram lá, tentam compreender a raça humana e o que os levou à destruição. Partindo da divisão de vagões entre “fumantes” e “não-fumantes” e da análise de quadros em um museu, os aliens chegam à conclusão de que existiam duas espécies de terráqueos: uns mais escuros, e outros mais claros. Chegam também à conclusão de que existia uma terceira espécie, que possuía asas.

Szilárd aqui parece flertar um pouco com a questão do racismo, ainda extremamente forte no pós-guerra. E parece também zombar da noção de que a cor de pele pudesse justificar uma rivalidade entre os humanos, quando compara as categorias de “negros” e “brancos” com a dos anjos nas pinturas.

Analisando os cubículos do banheiro público do terminal e vendo que em cada um deles havia uma fenda e, dentro dela, vários discos de metal com a inscrição “liberdade”, os aliens pressupõe que o banheiro e as moedas fizessem parte de um ritual associado ao desempenho das funções fisiológicas.

Aqui temos novamente uma dose de humor, que está presente em todo o conto. Pode-se facilmente perder-se na comicidade da história, com as teorias engraçadas dos aliens, quando, na verdade, o pano de fundo de Relatório Sobre O “Grande Terminal Central” lida com questões bastante trágicas – como, por exemplo, o fato de a raça humana ter sido exterminada. Além disso, o foco na palavra “liberdade” diz muito: numa época de perseguição aos comunistas, a liberdade de expressão e de ideias estava fortemente cerceada num país que supostamente presava pela liberdade acima de tudo. A First Amendment da Bill of Rights americana estipula que “congress shall make no law prohibiting the free exercise or abridging the freedom of speech, or of the press”. O presidente Roosevelt, em 1941, em plena segunda guerra, fez um discurso intitulado “The Four Freedoms Speech”, no qual enumerava as quatro liberdades essenciais do ser humano – de expressão, de religião, de viver sem passar necessidade e de viver sem medo –, que deveriam ser respeitadas por todas as pessoas, em todo o mundo. Esses princípios apareceriam mais tarde, em 1948, também na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proposta pela ONU. Só não apareceram na vida cotidiana dos americanos durante a Guerra Fria.

Xram é o único que, novamente, discorda dessa teoria – ele acha que os discos eram trocados pelos humanos num sistema de remuneração de serviços e acrescenta que “os terráqueos não eram seres racionais”. Eles trabalhariam em conjunto somente para poder adquirir os tais discos, garantindo o funcionamento da sociedade. E seriam esses discos que lhes garantiriam acesso à comida, por exemplo. Segundo seus cálculos, “um sistema de produção e distribuição de bens baseado em um mecanismo de troca de discos não pode ser estável, estando necessariamente sujeito a grandes fases de instabilidade” e acrescenta que “em tais fases de depressão, a guerra torna-se uma possibilidade psicológica até para seres da mesma espécie”. Os aliens mais uma vez não concordam com ele, taxando suas teorias de “bobagens”.

Xram é Marx ao contrário. E não remete ao sociólogo só no nome, mas nas suas teorias também. Szilárd foi brilhante na construção dessa personagem. Primeiro porque as teorias de Xram são as corretas, evocando no texto certa simpatia pelo socialismo, e segundo porque seus colegas o ridicularizam por ela – como os colegas americanos de Szilárd também faziam.

Relatório Sobre O “Grande Terminal Central” é um conto do que poderia ter sido. E, embora Leó Szilárd desacreditasse no futuro da humanidade, foi graças a pensadores como ele, que fizeram “cair a ficha” sobre a realidade de uma guerra nuclear mundial, que a humanidade, por enquanto, sobreviveu.

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