Reflexão: A Crise no Renascimento
O
Renascimento é tradicionalmente descrito através da suposta imitação da
natureza e do retorno aos clássicos realizados por seus artistas. De fato,
durante os anos 1400, teóricos e artistas como Alberti e Brunelleschi almejavam
uma arte que possuísse ambos esses aspectos. A formulação da perspectiva seria
o mais perfeito fruto dessa ambição: um sistema de regras matemáticas que
ordena o mundo de forma racional e necessária, compreendendo e organizando a
realidade. Esses artistas, então, representam o mundo natural através de uma
formulação geométrica, o que resulta em uma natureza idealizada e, portanto,
perfeitamente harmônica e equilibrada, eminentemente estética, como desejavam
os antigos clássicos.
O problema com essa
definição de Renascimento acontece quando nos deparamos com artistas que
parecem não só ignorar essas diretrizes, como verdadeiramente colidir com elas.
Observando a obra de Leonardo da Vinci, por exemplo, é inconcebível pensar que
sua arte seguisse qualquer formulação à
priori do espaço, como era a perspectiva. Ao contrário, o objetivo da arte
para da Vinci era a pesquisa contínua, a indagação acerca da realidade e,
principalmente, acerca da visão. O
limite de sua obra não é a construção perspéctica, racional, mas sim o “golpe
de vista” do sujeito, a percepção empírica da natureza através do sentido da
visão. A idealização proposta por Alberti e Brunelleschi pressupõe que a obra
de arte apresente um mundo resolvido em si, encerrado – mas esse seria
possivelmente o pior pesadelo de da Vinci, para quem a arte é o espaço de busca
incessante, num processo eterno e infinito de cognição do mundo. Se há qualquer
lógica organizacional na disposição dos elementos em da Vinci, ela é, antes de
tudo, a da lei natural, não matemática. Se é possível identificar um ponto de
fuga em suas pinturas, ele é o resultado de sua observação da realidade, e não
o pressuposto originário dela. O mundo dado dos clássicos já não satisfaz mais - é evidente que ele não corresponde à realidade. A harmonia, o belo, enfim, a estética,
já não mais responde às necessidades humanas. Da Vinci, então, busca, através
da arte, uma nova resposta; indaga através da observação e da racionalização,
de seus sentidos e de seu intelecto.
Michelângelo foi outro
artista do período cuja obra não se encaixa nos moldes renascentistas. Suas
esculturas, principalmente, demonstram que o objetivo de sua arte era o de
romper a forma da matéria, o de expurgar tudo o que fosse terreno em uma busca
incessante pela beleza transcendental. Beleza essa que, para ele, era um
processo interior – o de, ao nos apaixonarmos por algo material, sermos alçados
ao belo superior, intangível. Dessa forma, não é concebível que exista qualquer
regra, proporção, ou idealização baseada na natureza (matéria bruta) que alcance
essa beleza primordial. Michelângelo jamais olha para a natureza em busca de
inspiração. Ao contrário, quanto mais distante do mundo terreno, mais próximos
estamos do belo. A obra Escravo
(despertar) (1519-1536) é exemplar da concepção ética de Michelângelo de
que a função do artista é justamente expurgar ao máximo a matéria, libertando a
alma que existe dentro dela. Função essa que ele exercia com furor. Dessa
forma, não há qualquer harmonia serena ou equilíbrio em sua obra – seus corpos
contorcidos demonstram a turbulência de um espírito querendo se libertar de um
corpo que o restringe a todo momento.
A resposta que Alberti e
Brunelleschi deram para o problema da unificação entre a natureza e a história
– a perspectiva – mostra-se, em da Vinci e em Michelângelo, insuficiente. Para
o primeiro, porque o mundo não é dado, e o trabalho do artista é procurar o
sentido existente nele, buscando, através dos sentidos, entender suas relações.
Porque a realidade não está em uma lei matemática, mas sim em uma lei natural
que precisa, e deve, ser pesquisada infinitamente pelo homem. Para o segundo,
porque a beleza não se encontra jamais no mundo material e, por isso, a
organização da natureza não faz sentido quando se busca o belo. Porque o
trabalho do artista é quebrar essa aparente harmonia do mundo terreno, que na
verdade não seria mais do que correntes que aprisionam a alma, a verdadeira
beleza, e a impedem de se expressar. Organizar, harmonizar, idealizar... isto é
restringir ainda mais o verdadeiro espírito belo. Da Vinci e Michelângelo são
os mais perfeitos exemplos da crise apresentada no Renascimento. Crise porque,
se buscam tão incessantemente por uma resposta para as suas aflições, é porque
todas as que já foram dadas não os satisfazem. O primeiro, através de seu ingênio; o segundo, de seu gênio;
ambos negando a “imitação da natureza” e o “retorno às fontes clássicas”, cada
um por seus motivos; mas, também, criando seu próprio fazer artístico em busca de uma nova resposta.
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