Análise das artistas Arlene Shechet & Rachel Kneebone
ENSAIO COMPARATIVO SOBRE DOIS CERAMISTAS CONTEMPORÂNEOS
ARLENE SHECHET & RACHEL KNEEBONE
O trabalho de Arlene Shechet (1951, Nova York, EUA) é dar personalidade a algo que, em seu estado natural, não possui nada de belo. É ela mesma quem afirma isso, referindo-se ao trabalho em cerâmica: “por conta disso, eu posso inventar qualquer coisa”[1].
O curioso é que, se a argila em estado natural é amorfa, também o são as esculturas de Shechet. Lembram órgãos humanos, tumores, e coisas que algum dia já tiveram propósito, mas que, agora, derretidas, torcidas, fundidas, perderam sua funcionalidade.
Nos anos 1990, durante um dos períodos mais difíceis de sua vida – seu pai sofria de problemas cardiovasculares e outros dois amigos próximos estavam com doenças em estágio terminal – Shechet encontrou consolo em filosofias orientais e no trabalho com cerâmica. Começou mexendo com a terra, sentindo seu peso, sua maleabilidade, suas formas, sem qualquer ideia pré-concebida. Conforme movimentava o barro, via em suas dobras, torções e fendas o surgimento de formas orgânicas, num processo descrito como experimental[2].
Trabalhar com cerâmica, diz, “me fez prestar atenção e sentir como todas as coisas fazem parte de um processo transitório; a cerâmica começa como um pó, adicionamos água e ela torna-se líquida, até que endurece e endurece cada vez mais, descrevendo claramente o processo de mutação do mundo”. A cerâmica é notável por se tratar de um meio no qual o tempo está sempre presente. A passagem de sólido para líquido e sólido novamente é uma constante na poética de Shachet, que contrapões formas orgânicas, derretidas, sinuosas, com blocos de cimento ou madeira de corte reto e superfície homogênea.
A estruturação de sua poética através da cerâmica demanda artifícios técnicos bastante delicados. Por mais maciças que pareçam, as peças são todas ocas, para que possam ser queimadas sem explodirem. Shachet também não usa nada além do próprio barro em suas peças cerâmicas e, por isso, elas são construídas aos poucos, várias ao mesmo tempo, e suas partes são acrescentadas em diferentes etapas da secagem do material, para que elas aparentem sucumbirem sobre si mesmas – mas para que, de fato, mantenham-se firmemente em pé, cada parte que as compõe sustentando as demais.
Curiosamente, Shachet descreve-se como uma artista de instalações, e não de esculturas. Atenta ao entorno de suas obras, às luzes que refletem sobre elas, aos pedestais sobre os quais repousam, aos significados que adquirem quando sobrepostas à outras – tudo é coordenado pela artista para garantir que a experiência visual nunca seja a mesma de dois ângulos diferentes.
Tomando o ciclo da cerâmica como uma metáfora para o ciclo de mudanças da vida, entendemos o ímpeto da artista em incorporar pedaços quebrados de porcelana e partes do próprio forno de queima (como os tijolos) ou dos moldes em suas esculturas. É um trabalho de investigação tanto da forma quanto do material, dos seus limites, possibilidades e do seu processo de devir.
O grotesco das formas viscerais transfigura-se em delicadeza sublime quando em contato com finos pedestais minimalistas de metal, como em My Balzac (2010); a fluidez da forma orgânica adquire peso quando colocada sobre os blocos de cimento, como em Is and Is Not (2011). A dualidade e o jogo de ilusão entre o líquido e o sólido, o pesado e o leve, fascinam no trabalho de Shechet. É a aberração que seduz; o desejo e a repulsa despertados pelo desforme que, enquanto irreconhecível, torna-se lúdico.
“Eu me interesso na reação psicológica das pessoas ao ver algo aparentemente precário, principalmente quando feito de um material considerado frágil”[3]. A frase é da artista Arlene Shechet, mas poderia facilmente ter sido dita por outra artista e também ceramista, Rachel Kneebone (1973, Oxfordshire, Inglaterra).
Sua obra é marcada pela aglomeração de inúmeros corpos entrelaçados tão intrinsecamente que chegam a sugerir um oroboro humano.
A elegância e a serenidade das formas, de uma porcelana branca puríssima, escondem o aspecto grotesco da obra, que só se revela após minuciosa observação. Troncos dão lugares a pernas, cabeças tornam-se falos, e certos corpos simplesmente deixam de existir no meio do caminho. É um Bernini indo de encontro a um Bellmer.
A influência de esculturas gregas clássicas em Kneebone é inegável, assim como o aspecto simbolista de suas composições. A aproximação entre beleza e decadência, entre sexo e morte está presente em toda a sua obra. Uma sensualidade extrema que esconde horrores a quem ousar aproximar-se. Até mesmo os blocos minimalistas (por vezes semelhantes a lápides) que servem de palco para o bacanal canibal da artista parecem não suportar os pecados de seus ocupantes, e rachar sob tamanha pressão. A oposição entre fragilidade e resistência se dá aqui na relação entre componentes de mesma essência – ao contrário de Shechet, que chega a resultados semelhantes através da mistura de materiais.
As formas de Shechet são inquestionavelmente mais amorfas e indecifráveis do que as de Kneebone. Mas Shechet consegue chegar a um equilíbrio constante em suas instalações; elas são frágeis, sim, mas naquele exato ponto estão em perfeita composição. Já as de Kneebone parecem estar congeladas um milissegundo antes de sua derradeira queda; o equilíbrio, aqui, é impossível – há corpos demais querendo ocupar espaços que não lhes cabem. O mais notável, porém, é que ambas as artistas encontraram na cerâmica o meio perfeito de representar a delicada tensão entre o controle e o caos, o belo e o grotesco, o preciosismo e a deformação.
Referências
ARTSY. Disponível em: <https://www.artsy.net/article/artsy-editorial-as-the-art-world-swoons-over-playful-ceramics-arlene-shechet-hits-her-stride?utm_source=Current+Users&utm_campaign=04d8aded7d-Weekly+email+%23239_Editorial36&utm_medium=email&utm_term=0_c67eb1f0a4-04d8aded7d-414639533 >. Acesso em: 1 jun. 2015.
WHITE CUBE. Disponível em: <http://whitecube.com/artists/rachel_kneebone/>. Acesso em: 1 jun. 2015.
THE INDEPENDENT. Disponível em: <http://www.independent.co.uk/arts-entertainment/art/reviews/rachel-kneebone-lamentations-white-cube-hoxton-square-london-2172624.html>. Acesso em: 1 jun. 2015.
ART 21. Disponível em: <http://www.art21.org/artists/arlene-shechet>. Acesso em: 1 jun. 2015.
THE ART’S DESK. Disponível em: <http://www.theartsdesk.com/visual-arts/rachel-kneebone-brighton-festival>. Acesso em: 1 jun. 2015.
[1] ART 21. Disponível em <http://www.art21.org/artists/arlene-shechet>. Acesso em: 1 jun. 2015.
[2] Ibid.
[3] ARTSY. Disponível em: <https://www.artsy.net/article/artsy-editorial-as-the-art-world-swoons-over-playful-ceramics-arlene-shechet-hits-her-stride?utm_source=Current+Users&utm_campaign=04d8aded7d-Weekly+email+%23239_Editorial36&utm_medium=email&utm_term=0_c67eb1f0a4-04d8aded7d-414639533 >. Acesso em: 1 jun. 2015.
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