Analise da Obra de Chardin
Apenas a época e o local possibilitam a classificação de Jean-Baptiste-Siméon Chardin (1699-1779) como um artista do Rococó Francês. Seus quadros, tanto em tema quanto em execução, em nada se assemelham aos maiores representantes desse estilo (pensemos em Fragonard ou Boucher), aproximando-se muito mais de artistas holandeses como Vermeer (em seu fascínio por cenas domésticas) e Le Lain (na introspecção de seus personagens). Tudo em Chardin é calmo e comedido, desde a austera decoração de seus interiores burgueses até sua paleta de cores. A cintilação e languidez das fêtes galantes de Watteau, primeiro mestre do Rococó, não têm lugar na sutil gradação de tons e modestos ambientes de Chardin.
Chardin, diferentemente da maioria dos pintores da época, não submeteu ao júri do Salão de Artes de 1728 da Academia Real de Pintura e Escultura da França uma grande obra histórica ou alegórica, mas sim quatro naturezas-mortas de tamanho modesto. Apesar de tradicionalmente tido como o menor e menos importante dos gêneros, o pintor parecia perfeitamente contente em se dedicar durante muitos anos exclusivamente a esse tema. Talvez devido à sua natureza humilde, filho de carpinteiro, Chardin tratava os objetos comuns da vida cotidiana com um respeito que beirava à reverência, uma vez que o pote, o vaso, a panela, o jarro, a cadeira..., eram as posses que simbolizavam a vida dos homens e mulheres comuns. Vendia suas pequenas naturezas-mortas para membros da burguesia de Paris, que tinham como costume decorar suas salas de jantar com quadros desse porte e temática. No entanto, destaca-se dos outros pintores de mesmo gênero pela dignidade com que apresentava sua natureza-morta, palco ideal para a exploração dos elementos estruturais e ordenadores da pintura, para entender as relações formais entre os objetos, os tons e as luzes; o tratamento minucioso que reservava a cada objeto individual e à sua relação com os demais encantava o público e o levava a observar a obra com a igual minúcia.
A pintura Retrato de Auguste Gabriel Godefroy, de 1741, é bastante representativa das cenas de gênero de Chardin. Vemos em primeiro plano, muito próximo do observador, um menino da alta burguesia que brinca compenetrado com um pequeno peão, provavelmente fazendo uma pausa em seus estudos, como indicado pelos livros, papéis e pena alocados sobre a mesa. O ambiente é austero, como sempre em Chardin – a decoração é mínima, as cores são sóbrias e com pouca variedade cromática, o espaço não apresenta grande profundidade, mas a composição é impecável e a relação entre os objetos, bem como o jogo de vazios, é espertamente calculado. É comum que as personagens de Chardin estejam profundamente absortas em atividades do cotidiano, ignorando completamente a presença do observador, e assim criando a ilusão de que espiamos uma cena muita íntima. Os objetos, dispostos com uma precisão composicional perfeitamente equilibrada, são claramente um reflexo de sua especialidade: se cortarmos o quadro de forma a excluir a figura do menino, teremos uma bela natureza-morta, completamente realizada em si. De fato, é possível supor que Chardin apenas tenha pintado cenas de gênero seguindo sugestões de amigos e clientes, por ser um tema mais respeitado e mais caro do que a natureza-morta.
Em uma época em que era comum tentar abocanhar admiradores através de efeitos plásticos impressionantes ou grandes cenas de intensas realizações heroicas, como era praxe nos Salões de Arte parisiense, Chardin consegue ser bem-sucedido por um caminho contrário. Aparentemente, os visitantes do Salão gostaram de ver sua vida cotidiana imortalizada em quadros de acabamento suave mas primoroso, voltando sua atenção para os seres humanos comuns no lugar do enaltecimento da vida exclusivíssima da corte. O grande filósofo Denis Diderot (1713-1784) foi um dos que ficaram fascinados pelo modo exímio com que o mestre das naturezas-mortas misturava a tinta, sobrepondo camadas translúcidas de cores e texturas que, mesmo não escondendo sua natureza pictórica, quando em conjunto criavam uma ilusão de realidade mais perfeita do que o acabamento imaculado e homogêneo de uma pintura sem marcas de pincelada. Em obras como O pote de azeitonas (1760), que deslumbrou Diderot, sua técnica extraordinária aflora na maneira como suas pinceladas exprimem a luz que incide e reflete nos vidros, nas frutas, na porcelana e na madeira, cada qual de forma singular.
A maestria nos efeitos de luz deveu-se a incontáveis observações da natureza, em estúdio. Uma vez que não fora educado em uma academia de artes, Chardin não tinha o hábito de realizar estudos preliminares e esboços composicionais em papel antes de começar a pintura em tela. Ele observava os objetos reais e imediatamente começava a pintá-los em tinta, o que talvez possa explicar a simplicidade de seus quadros. Há registros de que mesmo suas cenas de gênero eram pintadas enquanto observava o modelo e o ambiente.
Apesar de seus personagens costumeiramente realizarem ações frívolas, elas não são da mesma ordem do gasto de energia despreocupado e da alegria exacerbada e artificial dos costumes da corte de Versalhes. Em uma época de excessos, Chardin dedicava-se à estabilidade e simplicidade, a uma harmonia conquistada apenas pelos elementos essenciais. Enquanto as obras típicas do Rococó enaltecem o aproveitamento intenso do tempo efêmero, as pinturas de Chardin parecem sempre esconder um memento mori por trás de sua aparente serenidade, seja em naturezas-mortas ou em pequenos elementos simbólicos de suas cenas de gênero (o peão, a bolha de sabão, o castelo de cartas, todos instáveis em sua fisicalidade); Chardin retorna à vanitas barroca ao mesmo tempo em que a atualiza em cenas cotidianas coevas. À serenidade de Chardin subjaz a certeza do fim.
REFERÊNCIAS
GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 1999.
BECKETT, W. História da Pintura. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
JANSON, H. W; JANSON, A. F. Iniciação à História da Arte. São Paulo: Ática, 1996.
ARGAN G. C. A Arte Moderna na Europa. São Paulo: Cia das Letras, 2010.
CROW, T. E. Painters and Public Life in Eighteenth-century Paris. Yale University Press, 1985.
MARQUES, L. (organização geral). Jean-Baptiste-Siméon Chardin. In: Catálogo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand: Arte da Península Ibérica, do Centro e do Norte da Europa. São Paulo: Ed. Prêmio, 1998. Disponível em: <http://www.masp.art.br/servicoeducativo/assessoriaaoprofessor-out06.php>.
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