Ingres v. Delacroix: Um Velho Debate Artístico
O momento pós-revolucionário francês viu surgir (ou ressurgir) em sua arte uma intensa querela: os chamados linearistas contra os ditos coloristas. Tal disputa pode ser resumida entre a tentativa de preservação do passado glorioso e a imaginação suscitada pelo futuro esperançoso. Os linearistas, que tinham em Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1867) seu maior representante no período, seguiam a longa tradição da antiguidade clássica greco-romana, e de todos os grandes mestres que por ela foram inspirados: Rafael, Poussin, David e a Academia. Por outro lado, cada vez maior era o apelo exercido pelos coloristas, encabeçados por Eugene Delacroix (1798-1863), pintores que negavam a formação acadêmica e eram guiados pelo sentido dos “novos tempos” – o Romantismo, seguindo Baudelaire e Lord Byron, era o novo ímpeto dos jovens pós-revolucionários – mas que tinham, eles também, sua tradição; eram inspirados pelo Gótico medieval, os renascentistas vienenses e, principalmente, o mestre holandês Rubens.
Os linearistas defendiam dogmaticamente que o desenho era superior a todos os outros aspectos da pintura, principalmente à cor. Poussin já havia afirmado tal, argumentando que o desenho, uma vez que formulado pela mente racional, seria superior a percepções puramente empíricas, como a cor. Outra característica fundamental desse grupo de artistas era sua admiração por grandes pinturas históricas, principalmente as de David e de Poussin. Ingres admitia ser esse seu gênero mais querido, embora tivesse muito mais habilidade na execução de retratos, pelos quais fez fama.
A grande odalisca (1814) de Dominique Ingres
A grande odalisca (1814) de Ingres é uma obra que contempla todas as características mais importantes desse artista. A composição e a escolha do tema são infinitamente clássicos: o nu feminino recostado, o mesmo que aparece na Fornarina de Rafael, e nas Vênus de Velásquez, de Ticiano, de Giorgione e de toda a antiguidade. As cores, como sempre, são sóbrias e contidas, mas, apesar de todo o discurso de Ingres, com frases inexoráveis como “a cor adiciona ornamentos à pintura, mas não passa de uma dama de companhia”, a cor em A grade odalisca foi cuidadosamente escolhida e sem ela, com certeza, a pintura perderia grande parte de sua maestria. É verdade que a linha e as variações tonais em Ingres são essenciais, mas não podemos deixar de questionar se seu repúdio à cor não passava simplesmente de um artifício para acirrar sua rivalidade com o “outro grupo”.
Apesar de ter estudado com David e ser seu maior seguidor, Ingres diferia significativamente de seu mestre: em geral, seus temas eram considerados “conservadores” pelo público, acostumados com o realismo atual de David (ou mesmo, em certa medida, de Delacroix); admitia também estar “exausto da convenção da massa corpórea” do mestre neoclássico, preferindo conferir às diferentes texturas nuances plásticas sofisticadas, construindo com minúcia cada superfície – não obstante todo o seu desprezo pelo apelo sensorial proclamado pelos coloristas, Ingres notadamente bebia mais dessa fonte do que o fez David, inclusive no alongamento de seus corpos femininos e sedutores, em oposição à rigidez corpórea do outro.
O desenho, como concebido por Ingres, não se tratava apenas de contorno – era um exercício de abstração da realidade, uma pesquisa sem fim das formas derivada de observação intensa. O domínio formal e a perfeição técnica eram tidos por ele como sendo a manifestação do valor interno de algo e, por isso, eram extremamente valiosos.
Já os coloristas, seguindo as palavras de Rubens, acreditavam que a cor era mais importante por, justamente, estar mais próxima da natureza e, como tal, não exigir do observador nenhum profundo conhecimento racional para poder admirar a beleza da pintura; era um argumento político: proclamava o leigo como o juiz supremo dos valores artísticos. Ademais, repudiavam a imitação da realidade tal qual ela se apresentava; os temas escolhidos podiam até ser reais, mas o tratamento dado a eles deveria, necessariamente, passar pela imaginação pessoal do artista, como acontece em A Liberdade Guiando o Povo (1830), obra-prima de Delacroix. Ele escreve em seu Diário: “o ser humano carrega na alma os sentimentos inatos que jamais se satisfarão com os objetos reais, e é a esses sentimentos que a imaginação do poeta e do pintor dará a forma e vida”. Em suma, presavam pela verdade poética.
Aparentemente, Delacroix estava certo, pois o público parisiense da época o elegera seu favorito. Cinquenta anos antes, o classicismo acadêmico de David era inovador – agora, após a Revolução, ele tornara-se o status quo, dogmático e estacionado, apoiado pelo governo e pela opinião conservadora. Prova disso era que Ingres tornara-se o pintor não-oficial da corte do rei Luís Filipe I. A desilusão com o momento político – a derrota de Napoleão, a Restauração Bourbon, a Revolução de 1830 e de 1848 – talvez tenha sido o motivo que levara a nova geração a ignorar a realidade e sonhar com um futuro diferente, como retratavam os românticos.
O grupo dos Rubenistas, como também eram chamados, era composto por artistas educados nas Academias mas que, influenciados pelo novo ideal romântico em voga, trilharam caminhos opostos ao que aprenderam na escola. O Romantismo, para esses jovens, significava a entrega revolucionária a uma causa (qualquer que fosse), ao refúgio em um passado inexistente e aos sonhos de um futuro improvável. Essa impossibilidade de concretizar no mundo real todas as suas intensas paixões trazia um fundo de melancolia e angústia ao movimento. A morte, quando honrosa, era vista como bela, na figura do Mártir. É importante notar também que o passado insuflado pelos românticos não era o mesmo dos neoclássicos: a antiguidade moral, austera e racional dos gregos não lhes impressionava; era a visão idealizada dos castelos e batalhas medievais, da religiosidade, do fantástico e do poético o que eles almejavam. Queriam reencantar o mundo. E muitos encontravam esse encanto no “oriente” (termo abrangente, que simplesmente significava tudo que não fosse centro-europeu), tido como exótico e cheio de maravilhas antigas.
Delacroix foi um dos que se deslumbraram com essas terras distantes. Viajou para o Marrocos e a Argélia e, a partir de então, os elementos exóticos do oriente aparecem em toda a sua produção. Mas o leste não era domínio exclusivo dos românticos. Ingres, talvez guiado por uma discreta tendência romântica – a mesma que tornou sua produção tão rica e, em certos aspectos, contraditória –, também pintou temas “exóticos”, como a odalisca comentada acima.
Odalisca reclinada em um divã (1827-28) de Eugene Delacroix
Mas a Odalisca reclinada em um divã (1827-28) de Delacroix parece habitar um país muito distante da de Ingres. As cores – o azul do manto à direita e os tons quentes sobre os quais recai o corpo da jovem – são semelhantes; mas, no mestre romântico, são elas quem ditam o quadro. A cor é o instrumento que Delacroix usa para compor suas formas, um método completamente oposto ao de Ingres. Para os rubenistas, nada existe sem a cor; para os poussinistas, a cor apenas decora o que já está pronto.
A fluidez e o vigor das pinceladas de Delacroix dão à sua odalisca uma vivacidade tangível. Embora claramente formada de tinta sobre tela, ela parece viva, suspirando e arqueando-se e ruborizando, como se pega em um fugaz momento. Tal energia vital só havia sido alcançada, antes, no barroco de Rubens e, decerto, esteve ausente durante toda a sobriedade neoclássica.
É difícil e generalizador tentar compor uma linha reta que ligue os coloristas e os linearistas com correntes separadas da arte moderna dos séculos futuros, talvez por que eles mesmos apresentassem áreas de convergência. Mas alguns aspectos são ponto-pacifico. A questão do momento fugaz, das pinceladas ágeis e da cor como instrumento base para a composição poderiam tão facilmente descrever os coloristas do século XVIII quanto os impressionistas do XIX. Mas a questão da observação da realidade pregada pelos linearistas também compõe parte integral da experiência impressionista, mesmo que nos primeiros ela se dê através da racionalização e, nos últimos, da sensação quase pura. De modo geral, o aspecto plástico das pinturas dos 1800s seguiu a linhagem de Delacroix, com grande importância dada à cor e à pincelada. Fantin-Latour pintou, em 1864, um quadro denominado Homenagem a Delacroix, em que apresenta figuras como Manet e Whistler, além dele próprio, agrupados em torno de um retrato do mestre colorista. Mas, ao contrário do que se possa pensar dada a referência confessa de Fantin-Latour, sua obra, principalmente suas naturezas-mortas, é bastante academicista e pautada no desenho. Da mesma forma, o realismo de Manet é diametralmente oposto à imaginação de Delacroix. Talvez a ligação mais direta entre os românticos do começo do século e os artistas posteriores sejam os Simbolistas, como Gustave Moreau – tanto em soluções plásticas quanto na temática onírica.
REFERÊNCIAS
GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 1999.
BECKETT, W. História da Pintura. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
JANSON, H. W; JANSON, A. F. Iniciação à História da Arte. São Paulo: Ática, 1996.
ARGAN G. C. A Arte Moderna na Europa. São Paulo: Cia das Letras, 2010.
CROW, T. E. Painters and Public Life in Eighteenth-century Paris. Yale University Press, 1985.
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