Análise: Mapa Mundi BR (Postal) de Rivane Neuenschwander

Sobre uma parede branca, cinco longas prateleiras em madeira escura dispõem 65 tipos de cartões postais fotográficos. Um funcionário da exposição[1] aproxima-se e diz que se eu quiser, posso levar um para casa. Examinando um dos postais ao centro da composição, divirto-me ao encontrar um “Salão Mississipi”; logo depois, “Suécia – Toldos e Persianas”, “Texas Bar”, “Avenida Montreal”... Percebo que, sim, todos são fotos de estabelecimentos brasileiros comuns com nomes de locais estrangeiros.

A princípio, a obra da mineira Rivane Neuenschwander nos diverte, movida pela ironia gerada na contradição da linguagem verbal com a não-verbal, chegando, em alguns casos, a uma situação completamente nonsense. Nomes do “primeiro mundo” estampados na linguagem visual simples dos estabelecimentos beira-de-estrada pelo Brasil. A disposição linear dos postais conta a história de uma viagem pelo país, mas as palavras contam de uma viagem pelo mundo – ideia sintetizada pelo título da obra, um mapa mundi brasileiro, e reforçada pelas obras que a cercam em uma das salas da exposição “Situações”, na Estação Pinacoteca, todas relacionadas com questões geográficas.

Subvertendo a cultura popular dos cartões-postais, que funcionam enquanto registro da posição do remetente e, por isso, são ilustrados com pontos turísticos locais, os de Neuenschwander mostram uma localização, mas falam o oposto. As imagens evocam a sensação de estar em um lugar enquanto quer-se estar em outro, o “complexo de vira-lata” do Brasil, país colonizado e emergente, que aspira apagar os indícios nacionais onde for possível, nem que somente no nome.

Compreender essa contradição, porém, exige um complexo repertório linguístico por parte do observador – quem consegue perceber que o “Paris Night Club” não fica em Paris, nem em um país anglófono, mas sim no Brasil? Mapa Mundi BR (Postal) necessita do título ou de um contexto cultural específico do observador para sua narrativa funcionar e, dessa forma, é uma obra que fala não só do brasileiro, mas com o brasileiro. Reconhecer os indícios de localidade para além do explicitamente dito é essencial para a compreensão da obra, e as características não-verbais dos estabelecimentos registrados pela artista não são estranhas a nenhum brasileiro.

Curioso ainda é o fato de que um dos cartões apresenta um estabelecimento chamado “Brasil Moto Taxi”, o único que faz referência à posição real do objeto registrado. A inclusão de tal item no conjunto exerce funções opostas: tanto pode ser entendida como um resquício de nacionalismo dentro de um forte contexto globalizador, quanto como a eliminação total de qualquer identidade nacional – a palavra Brasil é igualada a Hollywood, a Tokyo, a Colômbia, nenhuma delas mais exercendo qualquer função identificadora.

À essa gama poética, que se engendra através da forma e da visualidade do trabalho, a artista adiciona novas camadas de percepção quando sugere que o espectador da obra insira os cartões postais em seu meio tradicional, encorajando-o a enviá-los pelo correio. Assim, aciona noções de obra de arte coletiva, de inserção da obra em contextos alheios à esfera da arte, de ativação da obra pelo espectador, além de trabalhar com a reprodutibilidade e serialização virtualmente infinitas da obra, descartando as ideias de original e cópia e de conjunto e partes.

Com uma poética sempre sutil, Neuenschwander utiliza-se dos materiais comuns e das ações rotineiras das pessoas para criar suas obras. A questão da autoria é sempre questionada – o espectador nunca é passivo, suas ações por vezes modificam, ampliam ou mesmo criam o trabalho da artista. São obras que utilizam todas as formas de linguagem para conversar com o público sobre a experiência coletiva da vida. O alimento desses trabalhos é o mundo que nos cerca. São as placas de bar[2], as fitinhas do bonfim[3], os temperos da comida[4], a sujeira sob nossos pés[5], o primeiro amor[6], a escrita de um recado[7]. Toda a trajetória de Neuenschwander pode ser vista como uma tentativa de mapear este mundo – o que resulta, muitas vezes, em trabalhos no formato de mapas, cujas linhas, no entanto, são transitórias, orgânicas, resíduos de intemperismos. A artista cartografa com lesmas[8], formigas[9] e água da chuva[10].  Mapa Mundi BR (Postal) funciona como síntese dessa pesquisa poética, construindo um atlas do mundo dentro de um mapa do Brasil.

 



 

Rivane Neuenschwander

Mapa Múndi/BR (Postal), 2007

Instalação: prateleiras de madeira e cartões-postais

90 x 260 cm



[1] Exposição Situações: A Instalação no Acervo da Pinacoteca, na Estação Pinacoteca do Estado de São Paulo. De 06/08/2016 a 20/02/2017.

[2] Mapa Múndi/BR (Postal), 2007

[3] Eu Desejo o Seu Desejo, 2003

[4] Digestões Palatáveis, 2010

[5] O Trabalho dos Dias, 1998

[6] Primeiro Amor, 2005

[7] [...], 2004

[8] Carta Faminta, 2000

[9] Contingent, 2008

[10] Carta d’Água, 2007

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