Resenha: Pedagogia da Autonomia (Paulo Freire, 1996)

  

Em seu livro Pedagogia da Autonomia (1996), Paulo Freire pretende delinear saberes e práticas que considera indispensáveis a educadores críticos, progressistas, éticos e humanos, desafiando a atual e estrita compreensão do senso-comum do que seja educação e do que seja aprender.

Ensinar, verdadeiramente, não é transferir conhecimento, mas criar a possiblidade nos educandos de construir esse conhecimento. Docência e discência não são objetos um do outro, e sim partes integralmente componentes da experiência do ensinar e do aprender, num processo que Freire denomina como “dodiscência”. Aprender sempre precede o ensinar, e a pratica de ensinar-aprender é uma experiência total, diretiva, politica, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética.

 

1.      A CURIOSIDADE

A primeira qualidade essencial que o professor e o aluno devem ter é a curiosidade. A curiosidade do aluno, primeiramente ingênua, deve, através da escola, criticizar-se; mudando de qualidade, mas não de essência. Se a curiosidade ingênua do aluno é assassinada pela escola, ou se o professor a menospreza como um saber “menor”, torna-se impossível a fomentação de uma curiosidade crítica. A curiosidade é o que leva o ser a indagar, a desvelar, a pesquisar... a estar no mundo e a agir no mundo, e não apenas ser paciente diante dele.

Paulo Freire chama atenção para a necessidade de uma rigorosa formação ética e estética nesse processo de criticização. Ética porque, enquanto seres históricos, inacabados, temos a capacidade e a obrigação de fazer escolhas, de valorar, de romper ou não.

Se seres humanos são éticos, e a educação é a formação de um ser, ela nunca pode deixar de ser ética também. Nunca se pode deixar de lado a formação moral do educando, focando-se apenas nos conteúdos curriculares.

 

2.      O PENSAR CERTO

A prática docente não pode basear-se apenas na experiência do fazer, na espontaneidade. É necessário um pensamento crítico, sistemático, epistemologicamente rigoroso que acompanhe a prática – é o que Paulo Freire chama de “pensar certo”. A reflexão sobre a prática, na forma do pensar certo, é indispensável em uma educação crítica – assim como o momento reflexivo é indispensável para a consolidação de uma experiência verdadeira.

Pensar certo é pensar com profundidade na compreensão e interpretação dos fatos, estando disponível a revisão dos achados, mas sempre, sempre, assumindo seus pensamentos e decisões, e vivendo certo. De nada adianta pensar algo, ensinar algo, e agir em contrariedade a isso. Pensar certo, acima de tudo, exige a rejeição decidida de qualquer forma de discriminação.

Pensar certo é pensar sobre o mundo, não é jamais uma ação isolante. O pensar certo deve existir enquanto ato comunicante – ou seja, devemos pensar sobre o mundo para que possamos agir neste mundo. Todo entendimento só se faz humano e ético enquanto comunicável. Porém, essa comunicação não se dá em via de mão única; não há um sujeito e um paciente nessa relação, não há um “depósito de conhecimentos”, mas sim o desafio de produzir a quem se comunica sua própria compreensão do que está sendo comunicado.

Assim como a única forma de transmitir uma experiência verdadeira a alguém é proporcionar uma experiência a ser vivida por essa outra pessoa, ensinar o pensar certo também só é possível na medida em que a outra pessoa consiga produzir o seu próprio pensar certo. Ninguém, assumindo o papel de sujeito paciente, pode ter uma verdadeira experiência ou um pensar verdadeiramente certo. A tarefa do educador, então, é promover e auxiliar aos educandos experiências e pensares em que os educandos sejam sujeitos ativos.

 

3.      O SER HUMANO INACABADO

Ser gente é viver em possibilidades, e não em determinismos. Entender-se como um ser histórico, condicionado, mas também inacabado, é o primeiro passo para agir no mundo, para ir além do que somos hoje.  Paulo Freire fala, em todo o texto, que se reconhece como otimista, justamente porque acredita no ser humano como sujeito inacabado, e que, por isso, pode agir tanto em favor das injustiças do mundo, como contra elas.

O fatalismo de que “nada podemos fazer para mudar o modo como são as coisas hoje”, que Freire reconhece como uma ideologia tipicamente neoliberal, faz a realidade social e histórica passar-se por natural e imutável. Esse tipo de discurso nega que o ser humano seja um sujeito ético, histórico, inacabado e possível de alterar o mundo em que vive. Seres humanos são condicionados, mas jamais determinados pelas circunstâncias do meio. Se não houvesse possibilidade, se fossemos seres de natureza determinada, então ninguém seria responsável por suas próprias escolhas e a ética não existiria. A curiosidade e a busca pelo saber, que só se dá verdadeiramente enquanto ação no mundo, e que é a fundação da prática educativa, seriam, nessa lógica, impossíveis.

A conscientização de que somos seres historicamente condicionados, mas ainda assim inacabados, é essencial para buscarmos e agirmos com liberdade, com opção, com decisão, enfim, com ética; Freire resume: “é na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente”.

 

4.      O SUJEITO ÉTICO

Ser um sujeito ético exige o radical respeito à autonomia, à dignidade e à individualidade de cada um. Bem como exige que vivamos na prática esses preceitos, agindo de forma coerente com nosso discurso. O respeito do professor aos educandos exige que ele jamais zombe ou despreze dos conhecimentos socialmente adquiridos por eles, que trazem consigo para a escola, mas igualmente exige que ensine os alunos a pensar criticamente acerca desses conhecimentos, que nascem ingênuos, e que precisam tornar-se epistemológicos, submetidos a uma análise rigorosamente crítica. Nunca, porém, o professor pode permitir-se a ingenuidade de acreditar ser o seu papel algo trivial, ou inespecífico, ou igual ao dos educandos – o educador é o sujeito responsável por deflagrar e auxiliar o processo de auto-formação dos alunos que, por sua vez, necessitam da ajuda do professor.

É essencial que todos os envolvidos, alunos e professores, saibam que uma prática pedagógica democrática deva ser aberta, dialógica, curiosa – jamais forçando uma das partes a ser passiva no processo, jamais causando o silenciamento de alguns frente a outros. Porém, Freire atenta para o fato de que isso não significa que o silêncio não seja importante, ou que o professor não deva ter momentos de fala expositiva – o que deve existir sempre é um diálogo, em que todos falam uns com os outros, respeitando a palavra de todos. É tarefa do educador manter o tênue equilíbrio do ambiente pedagógico, entre sua autoridade e a liberdade dos sujeitos, impedindo que a balança penda para  o autoritarismo, em um dos lados, ou para a licenciosidade,  de outro. Mas cabe ao educando também perceber, através da prática, que sua curiosidade e liberdade, embora sempre em exercício, devem respeitar limites.

Esse equilíbrio é o que Paulo Freire chama de disciplina, e sem o qual não existe o clima de respeito que é essencial para o espaço pedagógico, pautado em relações justas, sérias, humildes, generosas, mas também afetivas e alegres.

 

5.      A POLITICA

Nenhuma maneira de estar no mundo é neutra, ou apolítica. A escola, como espaço de formação de sujeitos éticos, humanos, também jamais pode se afirmar neutra. Propor uma escola “sem partidos”, um espaço isento de política, na verdade resulta na adoção pela escola da ideologia dominante. Um sujeito ou uma instituição que negam seu papel político, que rejeitam a tomada de partido, não estão sendo neutras: estão sendo englobadas pelas escolhas políticas da situação. Quando o sujeito não opta, as ideologias dominantes optam por ele. A escola, exercendo seu papel de extrema importância na sociedade, deve decidir se vai reproduzir ou desmascarar as ideologias e escolhas políticas da situação em que está inserida.

É obrigação ética do professor, enquanto gente, tratar com seus alunos não só de seu campo específico do conhecimento, mas também de questões sociais, humanas, políticas; como diz Freire: “[é preciso] desafiar os grupos populares para que percebam, em termos críticos, a violência e a profunda injustiça que caracterizam sua situação concreta, mais ainda que a situação concreta não é destino certo, algo que não pode ser mudado”.

É igualmente obrigação ética do professor de lutar politicamente pelos direitos e pela dignidade de sua categoria, e de entender esta luta como parte componente de seu exercício docente.

É preciso, principalmente, saber que decidir é um processo responsável – devemos assumir e lidar com as consequências de nossas decisões, que sempre acarretam riscos.

 

6.      A AUTONOMIA

O aprendizado verdadeiro se dá quando o educando percebe-se e atua como sujeito da construção do próprio conhecimento. É o que Paulo Freire chama de pedagogia da autonomia – a liberdade vivida pelos educandos deve resultar na construção de uma autonomia pessoal, responsável e crítica, as fundações de um sujeito ético.

Os educandos existem para desempenhar o papel de enorme importância que é assessorar os sujeitos na busca e construção de sua própria autonomia, nunca deixando de lado seu papel também de sujeito, com opiniões e julgamentos, mas jamais impondo estes ao educando. A autonomia, então, vai se constituindo diariamente, através de inúmeras decisões que vão sendo tomadas pelos sujeitos em formação.

 

Paulo Freire conclui de forma bela como pretende realizar seu papel de educador:

“É assim que venho tentando ser professor, assumindo minhas convicções, disponível ao saber, sensível à boniteza da pratica educativa, instigado por seus desafios que não lhe permitem burocratizar-se, assumindo minhas limitações, acompanhadas sempre do esforço para superá-las, limitações que não procuro esconder em nome mesmo do respeito que me tenho e aos educandos”.

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