A Artificação do Instagram
Em meados do século XIX, a fotografia ainda era uma novidade. Usada principalmente para obter um registro “objetivo” de pessoas, lugares e eventos, seria impensável colocá-la no mesmo patamar de uma pintura do mestre Eugène Delacroix, por exemplo. Mas, hoje, quase 200 anos depois de sua invenção, ninguém questiona que as fotografias de Man Ray, Paul Strande ou Cindy Sherman sejam consideradas obras de arte. Como isso é possível? Será que antigamente as pessoas simplesmente não percebiam o valor artístico da fotografia? Será que ela é e sempre foi um processo puramente mecânico e, assim sendo, nunca poderia ser arte?
O filósofo Nelson Goodman resolveria essa questão, de certa forma, propondo outra pergunta: quando a fotografia funciona como arte? Em seu texto When is Art? (1977), Goodman afirma que uma obra de arte não possui nada intrinsecamente artístico e que, à priori, não seria diferente de qualquer outro objeto de nosso mundo. A diferença, então, se dá na função simbólica que tal objeto adquire quando colocado em relação a outros objetos, pessoas e situações. A isso ele dá um nome, que foi traduzido para o português por Noéli Ramme como “instauração”[1]. A instauração seria o momento em que um objeto passa a funcionar como obra de arte, como objeto estético. Para Goodman, não basta um artista executar um trabalho; esse trabalho deve ser potencializado em seu caráter simbólico e implementado num contexto que o insufle de significados – ou seja, ele precisa ser instaurado – para que funcione como arte. Retirado desse contexto e despotencializado, ele para de funcionar como arte. Por outro lado, objetos que não foram criados com o intuito de serem trabalhos de arte, uma vez instaurados podem também tornarem-se arte.
Tomando como base a filosofia de Goodman, podemos responder que a fotografia, como qualquer outro objeto ou ação, não é em si arte. Mas que existem momentos e situações relacionais que instilam a fotografia de símbolos e, então, ela passa a ser arte.
No entanto, o século XXI e suas novas tecnologias de produção e disseminação de imagens sem precedentes nos confronta com novas perguntas: toda imagem esteticamente simbólica funciona, automaticamente, como arte? Publicar uma fotografia em um “site de arte” instaura essa imagem da mesma forma que uma fotografia impressa apresentada numa “galeria de arte”? Seriam os instagramers artistas? O filtro esmaecedor potencializa mais uma imagem do que o filtro contrastador? Será esse o fim da fotografia como arte?!
Bem, para resolver essas questões precisamos recorrer não só à filosofia de Goodman sobre instauração, mas, principalmente, às ideias de Roberta Shapiro e Nathalie Heinich, em seu texto Quando há artificação? (2013)[2]. Para as pesquisadoras, o que garante o status de arte a um objeto ou prática é a soma de atividades institucionais, interações cotidianas, implementações técnicas e atribuições de significado – conjunto de processos sociais que denominam como “artificação” ou “a passagem da não-arte para a arte”. Quando este processo se completa, o objeto ou prática é aceito por toda a sociedade, inquestionavelmente, como “arte”.
Shapiro e Heinich, através da observação de práticas já artificadas e outras que se encontram ao longo desse processo, enumeraram alguns fatores necessários a qualquer artificação e, portanto, presentes em tudo que é considerado “arte”. Relacionando os pensamentos de ambas com os de Goodman, podemos deduzir que a efetividade da instauração de uma obra depende de quantos processos de artificação ela articula.
O artista contemporâneo Richard Prince começou a usar a rede social Instagram em 2014. Mas a notoriedade de seu usuário, à época @richardprince4, só veio depois de sua exposição na badalada Gagosian Gallery de Londres, em junho de 2015, quando suas obras chegaram a ser vendidas por 90.000 dólares. A exposição consistia basicamente em screenshots de postagens de outros usuários do Instagram, impressos com um metro e meio de altura, pendurados sobre paredes brancas[3]. Inadvertidamente, Prince produziu um experimento que faz levantar a hipótese: o Instagram não é capaz (pelo menos ainda) de instaurar uma obra com a mesma potência que consegue uma estabelecida galeria de arte. Ou seja, o Instragram não seria capaz de fazer imagens funcionarem como arte – mas uma galeria de arte seria. As imagens de Prince são exatamente as mesmas que aparecem no aplicativo – o que mudou foram o contexto, as relações estabelecidas entre as fotografias e o ambiente em que se encontram, o público que as vê, a atenção midiática que recebem. Galerias de arte são, talvez, o espaço com maior poder de legitimação da arte contemporânea. Certamente, apenas estar em uma galeria não é o suficiente para artificar algo de forma duradoura. Mas entendemos que, naquele momento, aquelas imagens, vendidas a milhares de dólares, observadas com sério interesse por um público intelectualizado e apreciadas puramente por seu valor estético, estavam funcionando como arte.
Foto da exposição “New Portraits” de Richard Prince, 2015
FONTE: STUART BUFORD/GAGOSIAN GALLERY
Para testar essa hipótese e tentar responder às perguntas anteriores, podemos, então, aplicar os conceitos de Shapiro e Heinich à plataforma de fotografia digital usada por Prince e outros 400 milhões de usuários[4]: o Instagram, criado em 2010. Segundo as autoras, os principais obstáculos para a artificação de uma prática são os seguintes:
Não obstante, o status social inferior de quem a pratica, de seus espectadores ou de seu público é de fato um obstáculo para a artificação e parece frear seu progresso. Outros fatores que atrapalham são a natureza utilitária de uma determinada prática (artesanato, arquitetura), a dependência em uma clientela (arquitetura, gastronomia, moda), as restrições técnicas que priorizam a proeza física mais que a arte (esportes, mágica), ou as limitações de transportabilidade (jardinagem, grafite). (SHAPIRO; HEINICH, op. cit., p.27)
O Instagram não apresenta nenhuma dessas características: apesar de ser relativamente democrático, seus usuários mais famosos são membros da elite; a plataforma não possui uma natureza utilitária; não depende de clientes, pois é gratuita; não necessita de proeza técnica para ser manejada; e, por ser virtual, pode ser transportada para qualquer lugar. Assim, o aplicativo passa na primeira etapa de verificação do seu poder artificador. Vamos agora analisá-lo através dos processos de individualização do autor, profissionalização, disseminação, amadurecimento, aumento da complexidade, institucionalização, crítica e debate pertinentes, publicações especializadas e intelectualização, identificados pelas autoras como essenciais no processo de artificação.
A individualização do autor configura-se por meio de um nome de usuário único e de um perfil privado com foto que pode ser “seguido” por fãs. A prática de “repostagem” de conteúdo não-original é socialmente condenada e contra as diretrizes do aplicativo[5]. Mesmo a utilização de filtros pré-programados já se encontra, de certa forma, superada – por um lado, hoje o Instagram oferece retoques de imagem altamente personalizáveis, com infinitas combinações possíveis e únicas; por outro, a hashtag #nofilter (que designa imagens sem alteração digital) é muito popular. Porém, não se deve esquecer que o Instagram é uma empresa e possui duras regras de censura – imagens contendo nudez, nudez parcial, violência, “transgressões” etc. são excluídas, muitas vezes arbitrariamente, e seus autores banidos[6] – fato que dificulta a artificação, uma vez que a arte não pode estar sujeita a censura.
O número de profissionais que vivem do Instagram não é pequeno. Apesar de a maioria deles se identificar mais como “trend-setter” do que como “artista”, diversos pintores, fotógrafos, grafiteiros etc. começaram a divulgar seu trabalho através da plataforma e não teriam sido reconhecidos sem ela. Um deles é Ashley Longshore (@ashleylongshoreart), que chega a vender suas pinturas por até 30.000 dólares através do Instagram: “Quando posto uma pintura, ela estará vendida antes de estar seca”.[7] A profissionalização de instagramers é seguramente um processo já completo.
A disseminação talvez seja o mais importante processo de artificação produzido pelo Instagram. “É absurdamente gigantesco”, diz Taylor Newby, gerente de comunidades online do Metropolitan Museum, em Nova York, “ele nos ajudou a nos conectar com uma audiência inteiramente nova, global, e muito mais jovem do que nossos visitantes tradicionais”.[8] Dave Krugman, que trabalha como intermediário entre instituições como o MET e suas contas no Instagram, compara: “o Instagram fez para a fotografia e as artes visuais o que a prensa fez para os livros e a escrita”.[9]
Os tempos em que redes sociais eram dominadas por adolescentes já acabaram: no mundo todo, a maioria dos usuários da Internet tem mais de 25 anos[10]. No Brasil, a maioria tem entre 25 e 34 anos[11] e, nos EUA, 28% têm mais de 55 anos, contra 21% dos menores de 24 anos[12]. Os jovens que cresceram e descobriram arte por meio do Instagram, durante seus seis anos de existência, agora são adultos e passaram a usar a plataforma de forma madura – é o processo de amadurecimento de um meio, o mesmo que aconteceu com as Histórias em Quadrinhos[13]. Junto da maioridade, surge o aumento da complexidade, do valor intelectual e estético.
Diversas instituições consagradas no mundo da arte possuem contas na rede social – inclusive, se não possuírem, correm o risco de serem vistas como “desatualizadas”. Seguir artistas, galerias e museus no Instagram já é praxe. Podemos dizer que, junto com Facebook e Twitter, ele é uma das redes sociais mais fortemente institucionalizadas hoje.
A crítica de arte vem, já há alguns anos, voltando sua atenção para as mídias digitais. Textos acerca do tema são cada vez mais comuns online e em publicações de prestígio. Buscar na Amazon.com o termo “Instagram” retornam 1.742 livros publicados sobre o assunto[14]. Instituições como a Art Dealers Association of America, NYCxDesign e National Gallery of Art de Washington já promoveram eventos de discussão sobre o Instagram[15] [16] [17], e o International Center of Photography em Nova York, regularmente faz exposições com obras criadas na Internet[18].
“Fotografias” não mais significam imagens impressas e emolduradas. Também significam imagens, infinitas em número, flutuando em tempo real nas redes de data, e capturadas com webcams, vídeo blogs, Twitter e Instagram. Essa mudança institucional de ênfases, não mais centrada em objetos materiais, mas em um campo muito mais amplo da cultura visual, [...] corresponde à história deste século. (COTTER, op. cit., 2016)
A intelectualização da prática, porém, ainda é polêmica. Enquanto alguns, como o artista Richard Haines (@richard_naines), preferem ignorar as diferenças simbólicas entre contextos distintos, afirmando que “uma obra de arte fala por si só, vista numa galeria ou num iPhone! Se for boa, é boa”[19], a maioria parece pensar como a consultora de arte Thea Westreich Wagner, que diz não ser contra o uso do Instagram, mas ser um pouco pessimista: “É provável que [o Instagram] vá produzir um jeito diferente de negociar no mundo da arte. Mas ainda sou absolutamente comprometida a ver uma obra de arte ao vivo antes de decidir comprá-la”. Quando questionada sobre a compra de obras através da internet, diz: “Não sei como alguém com um mínimo de apreço pelo que uma obra de arte realmente é pode fazer isso”.[20] Em outras palavras, para ela, é indispensável o contexto físico para uma obra poder funcionar. E quem procura instaurar sua obra em um contexto virtual sofre conseqüências: “Artistas como eu, que ganharam uma grande audiência [na Internet], de certa forma são vistos com maus olhos ou não são levados a sério pelo mundo da arte erudita”, diz o artista Gordon Stevenson, conhecido no Instagram por @baronvonfancy[21].
Hoje, não só o Instagram e demais redes sociais propulsionam cada vez mais a artificação, como, e talvez mais importantemente, alteram a lógica sequencial dos demais sistemas envolvidos.
Antes, artistas tinham que, primeiro, ganhar o suporte da elite do mundo da arte – críticos, galerias e colecionadores renomados, o que eventualmente levaria a exposições em museus – antes de chegarem às massas. Hoje, artistas usam o Instagram como sua própria galeria de arte virtual, fazendo o papel de negociante e de curador, enquanto seus fãs tornam-se colecionadores e críticos, acompanhando o processo criativo em tempo real.[22]
Se um artista é quem faz arte, e arte é o resultado de um processo social de significação, para podermos responder se usuários da Internet que postam suas fotografias online são artistas ou não, devemos antes descobrir se postar uma fotografia na Internet ativa processos de artificação suficientes para instaurar uma obra, fazê-la funcionar como arte. É claro que o processo de artificação em aplicativos como o Instagram está longe de ser o que Shapiro e Heinich chamam de durável, mas está igualmente longe de ser inalcançável. Acredito que é um processo contínuo, em andamento, mas com fortes forças contrárias e, por isso, possivelmente continue sendo por muito tempo, senão sempre, um processo parcial. Sua importância é reconhecida por alguns poucos: críticos, mercadores, público especializado... mas, mesmo dentro desse já seleto grupo, há muita discordância. Para quem a instauração de uma obra de arte necessita de um espaço físico, talvez a Internet nunca signifique muita coisa; mas, para gerações futuras, para quem a Internet possui inúmeros significados simbólicos, talvez um contexto virtual seja tão ou mais importante que um real, e suficiente para instaurar arte.
[1] RAMME, NOÉLI. Instauração: um conceito na filosofia de Goodman. In: Arte e Ensaio, v. 15, p. 92-97, 2007.
[2] SHAPIRO, Roberta; HEINICH, Nathalie. Quando há artificação? Sociedade e Estado, Brasília , v. 28, n. 1, p. 14-28, jan./abr. 2013. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922013000100002&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: 23 jun. 2016.
[3] FORREST, NICHOLAS. Richard Prince Subverts the Selfie at Gagosian London. In: Gagosian Gallery Blouin ArtInfo. Londres, 19 jun. 2015. Disponível em: < http://www.gagosian.com/exhibitions/richard-prince--june-12-2015 >. Acesso em: 23 jun. 2016.
[4] STATISTA. Leading social networks worldwide as of April 2016, ranked by number of active users (in millions). Disponível em: < http://www.statista.com/statistics/272014/global-social-networks-ranked-by-number-of-users/ >. Acesso em: 23 jun. 2016.
[5] INSTAGRAM. Diretrizes da comunidade. 19 jan. 2013. Disponível em: < https://pt-br.facebook.com/help/instagram/477434105621119/ >. Acesso em: 23 jun. 2016.
[6] INSTAGRAM. Termos de uso. 19 jan. 2013. Disponível em: < https://help.instagram.com/478745558852511# >. Acesso em: 23 jun. 2016.
[7] FLEMING, OLIVIA. Why the World’s Most Talked-About New Art Dealer Is Instagram. In: Vogue, 13 maio 2014. Disponível em: < http://www.vogue.com/872448/buying-and-selling-art-on-instagram/ >. Acesso em: 23 jun. 2016.
[8] KAUFMAN, LESLIE. Sharing Cultural Jewels via Instagram. In: The New York Times, Nova York, p. C1, 18 jun. 2014. Disponível em: < http://www.nytimes.com/2014/06/18/arts/design/sharing-cultural-jewels-via-instagram.html?_r=0 >. Acesso em: 23 jun. 2016.
[9] KAUFMAN, op. cit.
[10] STATISTA. Distribution of internet users worldwide as of November 2014, by age group. Disponível em: < http://www.statista.com/statistics/272365/age-distribution-of-internet-users-worldwide/ >. Acesso em: 23 jun. 2016.
[11] STATISTA. Distribution of internet users in Brazil as of March 2015, by age group. Disponível em: < http://www.statista.com/statistics/254724/age-distribution-of-internet-users-in-brazil/ >. Acesso em: 23 jun. 2016.
[12] STATISTA. Distribution of internet users in the United States as of August 2015, by age group and gender. Disponível em: < http://www.statista.com/statistics/244205/age-distribution-of-adult-internet-users-in-the-united-states/ >. Acesso em: 23 jun. 2016.
[13] SHAPIRO; HEINICH, op. cit.
[14] AMAZON. 1,742 results for Books: "instagram". Disponível em: < https://www.amazon.com/s/ref=nb_sb_noss_2?url=search-alias%3Dstripbooks&field-keywords=instagram >. Acesso em: 23 jun. 2016.
[15] MILLER, M. H. The Gallery, Unfiltered: On the Art World’s Instagram Obsession. In: Observer Culture, 30 abr. 2013. Disponível em: < http://observer.com/2013/04/the-gallery-unfiltered-on-the-art-worlds-instagram-obsession/ >. Acesso em: 23 jun. 2016.
[16] KAUFMAN, op. cit.
[17] FLEMING, op. cit.
[18] COTTER, HOLLAND. Photography’s Shifting Identity in an Insta-World. In: The New York Times. Nova York, 24 jun. 2016. P.C19. Disponível em: < http://www.nytimes.com/2016/06/24/arts/design/review-photographys-shifting-identity-in-an-insta-world.html >. Acesso em: 23 jun. 2016.
[19]FLEMING, op. cit.
[20] MILLER, op. cit.
[21] FLEMING, op. cit.
[22] FLEMING, op. cit.
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