Artificação: das Perucas aos Videogames
Shapiro e Heinich, em seu texto Quando há artificação?, explicam como a arte é “simbólica, material e contextual ao mesmo tempo”[1], denominando o conjunto desses processos como “artificação”. A artificação, sendo produto social, é dinâmica e, portanto, pode ser concluída, parcial, em andamento ou, até mesmo, em declínio ou completamente desfeita – “qual exemplo pertence a que tipo é uma questão fluida e pode mudar dependendo de uma variedade de contextos”[2]. Como exemplos de processos de artifição que se encontram em diferentes estágios, podemos citar a confecção de perucas e o desenvolvimento de vídeo games. O primeiro, argumentarei, possuía, em séculos passados, um processo de artificação parcial, porém poderoso, que se encontra hoje praticamente inexistente; o segundo, como tecnologia recente que é, há poucos anos não possuía nenhum prestígio artístico, enquanto hoje já articula rápidos processos de artificação.
AS PERUCAS
Especula-se que as perucas tiveram um início utilitário, mas rapidamente adquiriram prestígio estético. Inventadas no antigo Egito, tinham a função de proteger as cabeças do sol intenso do deserto, além de facilitar a higiene. Mas, como os artefatos e pinturas em tumbas antigas parecem indicar, a cabeça careca não era esteticamente preferida pelos egípcios. A maior parte deles, a não ser os sacerdotes e trabalhadores braçais, adornavam-se com perucas dos mais variados tipos, que não necessariamente tentavam simular o cabelo natural: eram arranjos de tranças presos com cera de abelha ou similares, bastante rígidos, e tingidos das mais variadas cores, como azul, vermelho, verde e até prata, além de serem regularmente lavadas e perfumadas[3]. As peças mais longas e elaboradas eram reservadas para as mulheres nobres, e era comum que os egípcios fossem enterrados usando suas perucas – demonstrando a importância simbólica que tinham. No entanto, a ausência de registros sobre seus artesãos parece indicar que, enquanto as perucas eram “objetos preciosos”[4], os peruqueiros não possuíam o mesmo zelo.
As perucas espalharam-se pela Grécia e, depois, pelo Império Romano, onde eram símbolo de status e beleza, amplamente usadas por todas as classes sociais, desde generais e suas mulheres até atores e prostituas. Com a cristianização do Império, em 313 d.C., a Igreja passou a condenar seu uso. Cipriano de Cartago teria dito que o adúltero é um pecador gravíssimo, mas aquele que usa cabelos falsos é um pecador ainda maior[5] – o poder simbólico da peruca era forte o suficiente para aterrorizar a Igreja Católica e durante quase toda a Idade Média ela desapareceu, bem como qualquer processo de artificação que poderia ter tido.
As perucas só voltariam a ser usadas no final do século XVI, com o estilo ditado pelas mulheres nobres da Europa. A Rainha Elizabeth I, Marguerite de Valois, Catherine de Médici e Mary da Escócia foram os ícones de cabelos falsos durante o século[6]. O reinado de Luís XIII na França, no século XVII, marcou a definitiva ascensão da peruca como símbolo de prestígio social e estético, com produção generalizada em 1655[7] e atingindo seu ápice com o Rei Luís XIV. Durante seu reinado, todos na corte usavam grandes perucas brancas, volumosas e cacheadas; o rei jamais se deixava ser visto sem sua peruca, sob o risco de perder sua dignidade; os perruquiers, artesãos responsáveis pelas perucas, adquiriram uma posição privilegiada na hierarquia social francesa, o próprio rei contratando 40 deles[8]. A presença de perucas em testamentos, juntamente com outros artefatos valiosos, atesta para o valor que elas possuíam nessa sociedade. Surgiram também ladrões de perucas e, em Caen, cidade da França, a população se encontrava com falta de amido para produção de pães, que estava sendo usado para branquear os cabelos falsos da corte. Na América, apesar dos protestos dos puritanos, que viam as perucas como “pecados da vaidade”, elas continuaram a se espalhar, e até os escravos, que obviamente não tinham condições de comprá-las, faziam suas próprias perucas de algodão e pelo de cabra[9].
O ofício de peruqueiro tornara-se tão bem estabelecido que, ao final do século XVII, sua própria guilda foi criada na França. Os peruqueiros podiam não ser considerados artistas do mesmo nível de poetas, mas certamente situavam-se acima da maioria dos trabalhadores manuais. As perucas perderam muito de seu papel utilitário e passaram a ser apreciadas cada vez mais por seu valor estético. Na corte de Luís XIII e seus sucessores, seu poder simbólico parece ter atingido o ápice, e os peruqueiros tornaram-se célebres, sua atividade ganhando, pela primeira vez, o status de arte: “a arte dos peruqueiros era comparada à de verdadeiros criadores”, escreve o historiador François Boucher[10]. Após 1680, a peruca ganhou proporções monumentais e cada perruquier esforçava-se para inventar um novo estilo que fizesse moda, como a binette, que levava o nome de seu criador, Monsieur Binet. Durante os anos seguintes, no século XVIII, os penteados femininos chegaram aos extremos mais surpreendentes. O coiffeur da corte, Legros, publicou várias edições de “Art de la Coiffeur des Dames” entre 1756 e 1768 e, no ano seguinte, criou a primeira Académie de Coffure.[11] As perucas, que podiam ter mais de um metro de altura,[12] eram montadas sobre arames e decoradas, ainda, com chapéus e acessórios dos mais variados tipos – de flores, fitas e pérolas à plumas exóticas gigantescas, miniaturas de barcos, ninhos de pássaros e serpentes falsas. Por 80 mil libras anuais, a condessa de Matignon contratou o célebre Beaulard para criar-lhe um penteado novo por dia.[13] Os cabelereiros, chapeleiros e peruqueiros da época eram tidos como personalidades, inclusive alimentando rivalidades pessoais, como a que Beaulard tinha com Rose Bertin.[14] Todos esses relatos parecem corroborar com os ideais de genialidade, originalidade e unicidade, apontados por Shapiro e Heinich como componentes do sistema moderno das artes.[15]
Com a morte de Luís XIV, as grandes perucas saíram de moda. Os homens passaram a usar cada vez mais seus cabelos naturais. Em 1765, os peruqueiros de Londres tentaram convencer o rei a tornar o uso da peruca obrigatório por lei, preocupados com a falência de seus ateliês. A decadência final das perucas, porém, foi a Revolução Francesa, que as estigmatizou como símbolos da aristocracia. Enquanto os pintores se adaptaram aos novos ideais burgueses pós-revolucionários, e puderam continuar em seu processo de artificação, que se concluiria no século XIX[16], os peruqueiros não tiveram o mesmo destino. A artificação das perucas foi bruscamente interrompida e, a partir de então, elas sofreram um processo de des-artificação rápido e praticamente total, do qual jamais se recuperaram.
Apesar do uso de perucas ter retornado à moda em alguns momentos após o século XVIII, principalmente na primeira metade do século XX, seu poder simbólico nunca retomou a força que teve na corte francesa. As perucas passaram de objetos exclusivos, artesanais e autorias a produtos industriais prêt-à-porter, compráveis nas lojas de departamento por preços modestos. Passaram de objeto simbólico, reverenciado e promotor de status social, a um adereço fashion, mas sem qualquer pretensão artística.
O New York Times, em uma reportagem de 2006 sobre Marie-Therese Lebeau e seus quatro assistentes, tidos como os últimos artesãos de perucas da França, afirma: “o peruqueiro francês, outrora um dos artesãos mais respeitados e poderosos do país, vem perdendo prestígio desde o século XIX, e hoje se encontra à beira da extinção”[17]. Lebeau começou a aprender o ofício nos anos 1960, quando ainda existia uma dúzia de perruquiers na França; hoje, seu ateliê MTL Wigs é o último. Sem espaço no mercado competitivo de perucas utilitárias produzidas industrialmente, os últimos peruqueiro sobrevivem vendendo e alugando as peças artesanais para produções teatrais e cinematográficas. “Os jovens da França não tem qualquer interesse em aprender um ofício tão trabalhoso”[18], Lebeau lamenta, e com tão pouco prestígio artístico, poderíamos acrescentar.
OS VÍDEOGAMES
Desde sua criação em meados do século XX, os vídeo games mudaram muito. Foram de rudimentares protótipos, a fliperamas, a consoles caseiros, a plataformas portáteis. A rápida evolução das tecnologias fez com que o meio atingisse graus de sofisticação técnica nunca imaginados.[19] E não demorou muito para que seus criadores e ávidos jogadores começassem a perceber os games como mais do que um simples passatempo. Com o fim de muitas das restrições técnicas, mentes criadoras passaram a encontrar na produção de jogos eletrônicos, e em sua natureza interativa, o meio ideal para expressarem suas ideias.
Em 2011, a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou que vídeo games estão protegidos pelos mesmos direitos das demais produções artísticas.[20] Instituições de arte prestigiadas como o Museum of Modern Art de Nova York[21] e o Smithsonian American Art Museum[22] estão realizando cada vez mais exposições envolvendo jogos eletrônicos. Dessa forma, fica impossível negar que os videogames estejam sofrendo um processo de artificação.
No entanto, até mesmo os estabelecimentos artísticos que promovem a artificação desse meio têm posturas dissonantes. Paola Antonelli, responsável pela aquisição de jogos eletrônicos pelo MoMA, afirma que “videogames são arte [...], mas também são design, e escolhemos nos aventurar nesse universo pela perspectiva do design”[23]; Kiera Long, curadora-sênior do Victoria & Albert Museum de Londres é ainda mais radical: “não acho que vídeo games sejam arte, acho que são design”[24], diz, ao mesmo tempo em que é responsável pelas primeiras aquisições de vídeo games pela instituição.
O estágio atual da artificação dos videogames encontra-se precisamente no que Shapiro e Heinich denominam “artificação parcial”. Segundo elas, isso acontece quando há uma clara distinção entre as produções de um meio: algumas são reconhecidas como arte, enquanto outras não são. Normalmente, as obras classificadas como arte são apreciadas por adultos cultos, enquanto as demais são favorecidas por crianças e jovens; as primeiras teriam valor estético e simbólico, e as segundas serviriam apenas para o entretenimento, não sendo dignas de apreciação artística. A distinção mais importante, porém, no que se refere aos videogames, parece ser o seu caráter mercadológico: os videogames que não são considerados arte são produzidos sob a lógica da cultura de massa, e visam o lucro de grandes empresas; já os videogames artificados costumam ser indies (produzidos independentemente), tendo como objetivo principal uma experiência estética, e não vendas. Muito semelhante ao processo de artificação do cinema que, apesar de ter se iniciado há mais tempo, encontra-se ainda hoje nesse embate entre o “cinema de arte” e o “cinema de entretenimento”, entre os “filmes cult” e os “filmes comerciais”.
A identificação de um autor criativo ainda é um dos mais importantes fatores no processo de artificação. Alguns desenvolvedores de videogames tentam driblar essa necessidade autoral, designando um grupo, e não uma pessoa, como o responsável criativo. Mas os videogames que conseguem de fato ser apreciados como arte costumam nomear uma única pessoa como “idealizadora” do projeto, não diferente de como operam muitos artistas conceituais. Shapiro e Heinich notam como certos desenvolvedores de vídeo games possuem um corpo de produção coerente e original[25], a tal ponto que os connoisseurs de games conseguem perceber um Miyamoto e um Wright num piscar de olhos.[26]
O principal, e talvez fatal, elemento que parece impedir uma artificação plena dos videogames é o que Goodman denomina “instauração”. Como se daria essa instauração? Se ela depender de um contexto físico, então o vídeo game jogado no computador do quarto ou na televisão da sala não estaria funcionando como arte, mas o mesmo videogame, “exposto” em um museu, estaria? Ademais, um videogame exposto o qual ninguém joga poderia ser chamado de jogo? Ou seria apenas um vídeo? A cultura dos museus se choca com a natureza interativa dos games[27] e as instituições tentam driblar isso de diferentes maneiras. O MoMA, por exemplo, ao “adquirir” certos jogos, procurou comprar cópias dos videogames em seu formato de software (disquetes, cartuchos, CDs...) e hardware (console) originais; tentou, também, comprar o código-fonte na linguagem na qual o videogame fora orginalmente escrito, mesmo que hoje ela esteja obsoleta; além de ter tido que lidar com direitos autorais complicados por parte dos distribuidores. Cada jogo foi exposto no MoMA de forma diferente: os de pouca duração puderam ser jogados em sua totalidade, enquanto os longos apenas em curtos períodos de demonstração; os jogos muito raros ou frágeis não puderam ser jogados em sua plataforma original, estando disponíveis em emulações interativas em uma plataforma mais moderna; videogames especialmente complexos foram apresentados em formato de vídeo, sem interatividade; e jogos multiplayer puderam ser jogados por meio de visitas guiadas.[28] Enquanto The Art of Video Games, exposição do Smithsonian, trazia consoles históricos apresentados como esculturas e 80 games em forma de vídeos, stills e capturas de tela ampliadas e penduradas nas paredes; apenas 5 vídeo games estavam disponíveis para os usuários jogarem livremente.[29]
Apesar da forte resistência de muitos críticos em denominar vídeo games como “arte”, pode-se observar que o meio já passou pelos processos de “elevação social, sofisticação e maioridade, tanto dos produtores quanto dos consumidores, individualização da produção e o advento do autor”, [30] como descrito por Shapiro e Heinich. Os jogos eletrônicos não são mais válidos apenas enquanto entretenimento; hoje, a preocupação estética no meio tornou-se tão ou mais importante.
[1] SHAPIRO; HEINICH, op. cit., p.14
[2] SHAPIRO; HEINICH, ibid., p.25
[3] CORSON, RICHARD. Fashions in Hair: The First Five Thousand Years. London: Peter Owen Limited, 1965 apud RANDOM HISTORY. “Horrid Bushes of Vanity”: A History of Wigs. 24 fev. 2009. Disponível em: < http://www.randomhistory.com/2009/02/24_wigs.html >. Acesso em: 28 jun. 2016
[4] BOUCHER, FRANÇOIS. Historia do Vestuário no Ocidente. São Paulo: Cosac Naify, 2010. P.79.
[5] CORSON, op. cit.
[6] CORSON, ibid.
[7] BOUCHER, op. cit., p.79.
[8] CORSON, op. cit.
[9] COOPER, WENDY. Hair: Sex, Society, and Symbolism. New York: Stein and Day Publishers, 1971 apud RANDOM HISTORY, op. cit.
[10] BOUCHER, op. cit., p.229.
[11] BOUCHER, op. cit., p.278.
[12] DUCHER, ALAIN. Coiffures Historiques: coiffures femmes Louis XVI (1774 - 1792) Disponível em: < http://www.coiffure-ducher.fr/louisxvi_femgene.html >. Acesso em: 28 jun. 2016
[13] BOUCHER, op. cit., p.281.
[14] BOUCHER, op. cit., p.287.
[15] SHAPIRO; HEINICH, op. cit., p. 15
[16] SHAPIRO; HEINICH, op. cit., p.19
[17] BARCHFIELD, JENNY. In France, the art of wig making is dying out. In: The New York Times, Nova York, 20 abr. 2006. Disponível em: < http://www.nytimes.com/2006/04/20/business/worldbusiness/in-france-the-art-of-wig-making-is-dying-out.html?_r=0 >. Acesso em: 28 jun. 2016
[18] BARCHFIELD, ibid.
[19] CHIKHANI, RIAD. The History Of Gaming: An Evolving Community. In: Crunch Network, 31 out. 2015. Disponível em: < https://techcrunch.com/2015/10/31/the-history-of-gaming-an-evolving-community/ >. Acesso em: 28 jun. 2016
[20] SUTTER, JOHN. Supreme Court sees video games as art. In: CNN, 28 jun. 2011. Disponível em: < http://edition.cnn.com/2011/TECH/gaming.gadgets/06/27/supreme.court.video.game.art/ >. Acesso em: 28 jun. 2016
[21] SOLON, OLIVIA. MoMA To Exhibit Videogames, From Pong To Minecraft. In: Wired, Reino Unido, 29 nov. 2012. Disponível em: < http://www.wired.com/2012/11/moma-videogames/ >. Acesso em: 28 jun. 2016
[22] TUCKER, ABIGAIL. The Art of Videogames. In: Smithsonian Magazine, mar. 2012. Disponível em: < http://www.smithsonianmag.com/arts-culture/the-art-of-video-games-101131359/?no-ist >. Acesso em: 28 jun. 2016
[23] SOLON, ibid.
[24] SHARPE, EMILY. Video games in museums: fine art or just fun?. In: The Art Newspaper, v.265, 07 fev. 2015. Disponível em: < http://old.theartnewspaper.com/articles/Video-games-in-museums-fine-art-or-just-fun/36905 >. Acesso em: 28 jun. 2016
[25] SHAPIRO; HEINICH, op. cit., p.20
[26] STUART, KEITH. Are video games art: the debate that shouldn't be. In: The Guardian, 06 dez. 2012. Disponível em: < https://www.theguardian.com/technology/gamesblog/2012/dec/06/video-games-as-art >. Acesso em: 28 jun. 2016
[27] MULKERIN, TIM. The State of Games at MoMA 4 Years Later (Part One). In: Paste Magazine, 22 fev. 2016. Disponível em: < https://www.pastemagazine.com/articles/2016/02/the-state-of-games-at-moma-4-years-later-part-i.html >. Acesso em: 28 jun. 2016
[28] SOLON, op. cit.
[29] SAAM. Exhibitions: The Art of Video Games. In: Smithsonian American Art Museum, 2012. Disponível em: < http://americanart.si.edu/exhibitions/archive/2012/games/ >. Acesso em: 28 jun. 2016
[30] SHAPIRO; HEINICH, op. cit., p.21
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