Resenha: A Sangue Frio (Truman Capote)

★★★★☆

Uma realidade mais complexa que a ficção 

O que acontece com uma pequena cidade do interior, do tipo que as portas das casas nunca são trancadas e todos se encontram aos domingos na igreja, quando a família mais benquista do lugar é amarrada, amordaçada, e assassinada de forma brutal e aparentemente sem motivo? Esse era o questionamento que impulsionou Truman Capote a dirigir até a cidade de Holcomb, Kansas, em 1959, após tomar conhecimento do caso através de jornais, e entrevistar grande número de seus habitantes atrás da resposta. Seis anos depois, reuniu as histórias que ouviu em sua jornada no livro “A Sangue Frio”, publicado pelo The New Yorker, que se tornou um marco do jornalismo literário e foi considerado pelo próprio autor como o precursor de um novo gênero, o “romance de não-ficção”.

Quando Capote começou a coletar informações para sua obra, ele, assim como a polícia, ainda não tinha conhecimento dos autores do crime. Tremenda foi sua sorte em descobrir assassinos tão complexos e interessantes que acabam ofuscando completamente a história da família que mataram, os Clutter, e tornando-se a parte mais intrincada da narrativa. A vida e a mente de Perry Smith e Dick Hickock são absolutamente destrinchadas ao longo do livro, e é isso que o torna tão bom. Embora Capote afirme que é essencial que o narrador se ausente dos relatos num romance de não-ficção, a forte amizade que acabou construindo com ambos os criminosos transparece em muitos pontos da narrativa – o retrato dos assassinos é tão ou mais humano que o da família assassinada e, assim como Capote, sentimos compaixão por eles. Em vários momentos, Perry e Dick parecem nada mais do que crianças, com os sonhos infantis de tesouros enterrados do primeiro, e a superproteção da família do segundo. É fácil esquecermo-nos do crime que cometeram. Ao final do livro, a pena capital parece-nos desproporcional: podemos não concordar ou aceitar o que os dois fizeram, mas certamente compreendemos seus motivos.

O choque da brutalidade do crime, e o sofrimento causado por ele, atingem seu ápice na figura de Bobby Rupp, o namorado de Nancy, que entra em uma profunda depressão e parece perder o ímpeto de viver. Sentimento esse de certa forma compartilhado pelos próprios autores do crime – após o furor inicial, quando a adrenalina não mais circulava em seus corpos, o horror do que fizeram parece finalmente afetá-los, principalmente Smith, que chega a cogitar o suicídio para finalmente escapar daquilo que chama “uma corrida sem linha de chegada”. Sentimos a mesma desolação que todos eles quando lemos sua história. A inserção de transcrições de relatos de pessoas reais, intimamente ligadas com os acontecimentos, não nos deixa esquecer que não se trata de ficção, por mais elaborada que seja a história. A riqueza de detalhes com que todos os envolvidos descrevem os acontecimentos é assustadora, e nos faz questionar até que ponto Capote levou a liberdade de interpretação, ou se os entrevistados tinham apenas uma memória excepcional. Desde o começo sabemos que a família será assassinada e, mesmo assim, a narrativa é conduzida de forma tão bem planejada, que os acontecimentos parecem nos pegar de surpresa.

Muito pode ser refletido sobre “A Sangue Frio”. Primeiro, dentro da própria narrativa: a finalidade brutal da pena capital, os limites entre loucura e sanidade da mente humana, o impacto de um crime horrível e inesperado numa cidade anteriormente pacata. Depois, podemos ir além, e refletir sobre o propósito do gênero “criado” por Capote e suas consequências: quantos casos como o da família Clutter não são noticiados diariamente nos jornais? E a quantos damos a devida atenção? A complexidade do crime, dos autores e das vítimas é sumariamente ignorada, e desprovido de nomes e descrições psicológicas, os relatos jornalísticos afastam-se do leitor, e parecem-nos mais ficção do que realidade. Ao final do livro, compreendemos a gritante diferença entre dois jovens matando quatro membros de uma família e de Perry Smith e Dick Hickock matando Herb, Bonnie, Nancy, e Kenyon Clutter. O crime foi real, e o único modo de fazer jus a ele é contando a história real, dos humanos reais que o cometeram.

Capa da edição da Cia das Letras e foto dos assassinos Perry e Dick

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